Por Fernanda Vedana Quando se é uma criança gordinha, baixinha e dentuça, a vida já começa como um desafio. Se acrescentarmos, ainda,...

A Hora do Recreio

/
0 Comments
Por Fernanda Vedana

Quando se é uma criança gordinha, baixinha e dentuça, a vida já começa como um desafio. Se acrescentarmos, ainda, um aparelho dentário e óculos à equação, resta apenas uma certeza: você vai voltar da escola chorando. Entre os muitos traumas que guardo dessa época, o pior deles, sem dúvida, eram os 20 minutos diários de recreio. 20 minutos inteiros. O sinal tocava e, um a um, os colegas levantavam de suas cadeiras e se uniam a um grupo em uma parte diferente da sala de aula. Já eu, não tinha um grupo. Se me tornasse muito evidente, o ataque era certo: gordafeia. O segredo era tornar-me invisível: 20 minutos de invisibilidade por dia. De algum banco isolado, observava os coleguinhas dentro de seus grupos: vestiam-se e falavam de uma forma muito parecida, gritavam uns mais alto que os outros, e todos ao mesmo tempo... Corriam desgovernados, chocavam-se, riam e voltavam a gritar. Nesses momentos, experimentava uma espécie de sentimento paradoxal, que acabou por acompanhar-me por toda a vida. Era um dever de pertencimento, uma sensação de que, por não fazer parte de um daqueles grupos, eu não era normal, acompanhado de pouca – ou quase nenhuma – vontade de concretamente unir-me às tais panelinhas. De certa forma, sempre associei o direito a ser estranha com a liberdade de ser quem sou e, por isso, conservei como meta sobreviver à escola, sem deixar que minha estranheza fosse subtraída. Foi uma liberdade cara: muitos gordas e muitos choros e lanches comidos no banheiro da escola. Grandes grupos não gostam de gente que destoe, existe uma ameaça velada na liberdade daquele ser que não coopera.

Na hora do recreio, no pátio da escola, ou você tem a sua panelinha, ou você está só. E o mundo é uma selva, não há piedade ou perdão para quem não dança a dança.
Esse tempo passou e a vida tornou-se uma espécie de “equação de vidas”: temos uma vida pessoal, uma vida profissional, uma vida social, uma vida política, uma vida espiritual, etc. Em cada uma dessas vidas, experimentamos um estágio de maturidade, em função das diferentes experiências e dos aprendizados. No entanto, conservei, em todas elas, o velho hábito da estranheza: observar aos demais, entendê-los, sem nunca pertencer-lhes. Em um desses meus exercícios de observação, comecei a perceber que, em um aspecto particular da vida, meus colegas ainda não haviam saído do pátio da escola: a vida política ainda está a acontecer por lá. Temos grupos bem definidos e você pode escolher o seu. Feita a escolha, é hora de começar a gritar, correr, vestir as cores do time e repetir o script. Os professores e diretores da escola tornaram-se o Estado, de quem nos cabe enfrentar, reclamar.

         Existe, no entanto, um pequeno – e grave – problema neste ponto: quando se é criança, há a quem reclamar. Você volta para casa e chora para sua mãe ou para o seu pai e cada dia é um recomeço, em que o ontem não existiu. Saímos do pátio da escola e colapsamos aos perceber que não há mais ninguém para chorar nossas penas: o que você faz e fala é problema seu, você é a última e única instância de seus atos políticos. Quer dizer, o problema não é exatamente seu... Quando a arena é a política, o problema é nosso, o seu voto decide a minha vida. Aqui, agrava-se significantemente o problema: damos o poder de decisão e responsabilidade às crianças que ainda estão a dividir o mundo em panelinhas que medem força no pátio da escola, como se houvessem pais, professores e diretores que fossem seus responsáveis e protetores. Aquela criança que normalmente se identifica por ser maior, mais bruta e falar mais alto que todos, então, vem à tona: o bullying. Ele grita: “o meu grupo é melhor que o seu”, os demais gritam junto. O campeão é quem gritar mais alto, ganha um ponto na gincana.

           Parece trágico, especialmente se não há um grupo bom para pertencer. Mas, calma: já criaram uma solução para esse exato problema. Para que não tenhamos que entrar compulsoriamente em um grupo e vestir suas cores, ou para que não tenhamos que gritar mais alto que os outros para nos fazer ouvir e, assim, para que possamos seguir conservando nossas estranhezas na vida adulta, quando já não podemos mais ser invisíveis, criou-se um mecanismo interessante: o nome é democracia. Com a tal da democracia, apenas por existir como um ser humano, você já tem direitos. Um deles é o direito a votar, ou seja, você observa o mundo desde seu ponto de vista e tira suas próprias conclusões. Com base nessas conclusões, você faz escolhas pessoais. Para a democracia funcionar, no entanto, há um porém: temos que realmente sair do pátio da escola, perceber que não há um professor bom ou mau, um colega bom ou mau para fugir ou seguir... Estamos sós e livres, para criar nosso próprio uniforme e nossas próprias falas. Somos responsáveis. Basta, para isso, não querer fazer parte – ou melhor, abominar a ideia – de enquadrar-se no grande grupo “massa de manobra”.

         O tempo do recreio passou, as panelinhas foram substituídas por panelaços, o professor virou prefeito e nós, os responsáveis. Gostando ou não, a democracia está aí, e ela cobra independência de pensamento e responsabilidade pelas escolhas que fazemos. Não há pai ou mãe para chorar nossas penas, ouvir nossos prantos. Não há herói, nem tirano. Há apenas muitas estranhezas, de igual valor, pessoas com mundos particulares, repletas de necessidades, problemas e incertezas que são apenas suas.

         Termino a presente crônica com um trecho de autoria de Bob Dylan[1], em que nos lembra da importância em mantermos verdadeiras conversas, ou seja, ouvirmos e sermos ouvidos, cada um a partir de seu ponto, para que possamos construir juntos nossos próprios e novos castelos: Sim, sou um ladrão de pensamentos/não um caçador de almas, juro-vos/construí e reconstruí/sobre o que espera/porque a areia nas praias/recorta muitos castelos/naquilo que foi aberto/no tempo que me antecedeu/uma palavra, uma brisa, uma história, uma linha/chaves no vento para o meu espírito vagabundo/que dá aos meus pensamentos uma corrente de ar fresco/não me ocupo dessas coisas, sentar-me e meditar/na perda e na contemplação do tempo/para pensar pensamentos que ainda não foram pensados/para pensar sonhos que ainda não foram sonhados/ou ideias novas ainda não escritas/ou palavras novas que rimariam.../e desprezo as regras novas/porque ainda estão por fabricar/e grito o que canta na minha cabeça/sabendo que sou eu e outros meus iguais/que as faremos, a essas novas regras...


Odeio sentir-me de volta ao pátio do colégio, com quase 30 anos. Façamos nossas novas regras, a partir de nós mesmos, como indivíduos adultos, responsáveis e estranhos, únicos em nossos pensamentos e desejos.






[1] (DELEUZE, Guilles; PARNET, Claire. Diálogos. Relógio D’Água Editores: Lisboa, 2004, p. 17. citando Bob Dylan)


You may also like

Nenhum comentário :

Filosofia do Cotidiano. Tecnologia do Blogger.