por Myra Soarys “Éramos velhos, quando nossas costas não se curvavam mais, éramos velhos com nossos olhos sem visão, embaçados pelo...

Corpo Arcaico

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por Myra Soarys

“Éramos velhos, quando nossas costas não se curvavam mais, éramos velhos com nossos olhos sem visão, embaçados pelo tempo. Éramos velhos que não nos importávamos mais com a caminhada lenta, quase arrastada, dada por aqueles pés enrugados, constituído de ossos ocos.

Éramos velhos conservadores das boas lembranças de criança, éramos velhos que suportavam os dias se encurtarem em direção a morte, éramos velhos que puxavam o nosso corpo com muito zelo, para assim tentarmos conservá-lo por mais e mais dias.

Éramos… velhos, com pensamentos que faleciam com o tempo, eis que sou um dos velhos, que não lembra aonde deveria ir, aonde deveria ficar. Não recordo como antes o nome dos meus sete filhos, talvez João, quem sabe Francisco. Droga‼ Envelhecer dói, machuca.

Sinto-me uma terra imprópria para cultivo nesse fim de vida, tantos me cavaram e plantaram flores em mim, hoje eu não semeio nada, na visão das carnes jovens, somente solto folhas secas dos meus galhos ressecados.  

Éramos velhos e a cada dia que se passa sou mais. Vivo esquecendo e sou esquecido, por mim mesmo, e pelos meus frutos, que um dia os cuidei.

Tornei-me uma veste que não mais cabe em meus filhos, me abandonaram dentro de um guarda-roupa da vida, tal guarda-roupa que somente sinto o mofo que se instala. Penso todos os dias da minha vida, que serei o casaco de inverno que os aquece dentro do meu peito, porém agora é verão e esse calor nos afasta. Só desejo que essa estação não se prorrogue.

Desce lágrimas dos meus olhos, que bom que ainda lembro como chorar, isso a velhice não me roubou. Chorar? Nossa, queria derramar lagrimas de felicidade, porém, para mim, estou a morrer a cada dia sem a alma de alguém.

Éramos… velhos e ainda sou um velho, sinto meu corpo desfalecer, dias, meses se passam e não sei, mas andar por mim, e eu sinto que aqui estacionarei. Não consigo mais lutar contra meu corpo fraco, não sei respirar sozinho, meus órgãos não funcionam como antes. Respirar pra mim é como rasgar uma faca no meu peito. Caminhar… cada passo um membro a se deslocar pra fora da minha alma.

Eu sofro em pensar, que aquela porta não se abre há mais de 30 anos e espero a bondade do tempo de me fazer resistente para vê-la aberta, sentir alguém me erguendo e me fazendo novamente viver, torna-se útil de novo, voltar a ser… ser humano. E descansar ao lado de deus e de minha Suzane.”

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