Francisco Arseli Kern [1]  “Havia um  homem que tinha dois filhos. O mais jovem disse ao Pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me ca...

O VOLTAR PARA CASA, UM RETORNO PARA O HABITAT SAGRADO

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Francisco Arseli Kern[1]

 “Havia um  homem que tinha dois filhos. O mais jovem disse ao Pai: ‘Pai, dá-me a parte da herança que me cabe’. E o Pai dividiu  os bens  entre eles. Poucos dias depois, ajuntando todos os seus pertences, o filho mais jovem partiu para uma região longínqua e ali dissipou sua herança numa vida devassa. Gastou tudo, sobreveio àquela  região uma grande fome e ele começou a passar privações. Após passar por inúmeras  dificuldades, caiu em si, arrependeu-se e retornou ao encontro do pai. Ainda longe, seu pai o viu e encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos. O filho, então, disse-lhe: ‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou  digno de ser chamado teu filho.’ O pai, compadecido mandou buscar a melhor túnica, pôs um anel no seu dedo e sandálias nos pés.Mandou matar um novilho gordo e deu  ordens para uma grande festa, pois ‘este meu filho estava morto e foi reencontrado’”. (NOUWEN, 1999, p. 7)

A partir desta narrativa da cena do Filho Pródigo já narrada por Jesus Cristo, evidenciam-se imagens significativas que num primeiro momento parecem tão íntimas de uma família, e num segundo momento, dão a impressão que se trata de um retrato da realidade social atual. Recria-se, então a imagem de um Filho Pródigo com a cabeça raspada, sandálias gastas, ajoelhado aos pés do pai, despojado de seus traços de personalidade. O filho ajoelhado não tem agasalho, a roupa parda e rasgada denunciam seu corpo cansado. Evidencia-se o contraste entre o que possui tudo, e aquele que está despojado de tudo, menos da espada. Símbolo da nobreza, a espada presa à cintura, representa um sinal de dignidade que resta. Humilhação, vazio e derrota são os aspectos centrais da imagem.


O pai por sua vez, está vestido com amplos mantos que lhes conferem status e dignidade, mas acima de tudo, gestos de misericórdia e de júbilo. A atitude do pai em querer comemorar, representa a felicidade, o perdão, o recomeçar da vida, enfim, a reconciliação sem cobranças. Na Parábola do Filho Pródigo, estão implícitas  uma infinidade de  sentidos e categorias com as quais o ser humano se depara  constantemente: um lar familiar desfeito e  reconstruído, a experiência da vida, a partilha de bens, a submissão, a vida desregrada, a transgressão, a culpa, o perdão, o recomeçar da vida plena, entre outras.

Sem dúvida, a parábola do Filho Pródigo é um exemplo de retorno à vida. Envolve reconciliação, amor, misericórdia, mas também julgamentos e reprovações, principalmente quando o filho mais velho cobra do pai a sua dedicação e julga o irmão mais novo pela vida que teria experimentado. O ato de deixar a casa significa novamente a necessidade de buscar  um lar mesmo que este esteja  distante para depois retornar porém, trazendo consigo uma experiência de vida que o filho mais velho jamais conquistou.

Entram em cena então, personagens sociais que são significativos: se por um lado há alguém que discrimina, que julga, que condena, há também a figura daquele que acolhe, que emite olhar de recepção, que protege, que garante um acesso à dignidade. Há também o personagem que deve voltar à vida, ao sentido de existência, mesmo desconfigurado e dilacerado. O re-acreditar na vida e na continuidade da mesma, é condição fundamental e que faz a diferença! Há também o personagem que continuará julgando, condenando, como forma de pré-estabelecer o que deva ser normal, reproduzindo assim, a exclusão social.

Se assim for na trama das relações sociais, então que sejamos filhos que retornam à vida, que sejamos a  representação da figura do pai que acolhe, mas que jamais sejamos o irmão que pune.A necessidade de voltar para casa é uma tarefa árdua, pois ao mesmo  tempo em que o humano sente a necessidade de buscar alimento no mundo exterior, não se dá  conta de que este mundo, quase sempre, o absorve de forma tão voraz, que acaba esquecendo a sua identidade e o seu endereço de retorno.

Querer  retornar é um desejo natural que se transforma em ato de vontade, e a partir de então, faz o humano entrar em ação. Mesmo que este retorno seja um processo, o endereço a que se deve  retornar se torna, muitas vezes, obscuro e nebuloso. Neste sentido, lançado ao mundo em busca de uma  outra  vida, o Filho Pródigo foi extremamente corajoso e audacioso, ao passo que seu irmão mais velho jamais teve a experiência de vida de seu irmão mais novo.

O Filho Pródigo empreendeu uma luta, mesmo sem a luz do trajeto conhecido e sem a segurança da travessia segura de sua jornada. A pergunta que poderia ser feita é: para onde levou a luta do Filho Pródigo em sua jornada? Fragilizado, derrotado, angustiado, o filho retorna para a vida. O que importa trazer presente é que, mesmo lançado ao mundo, o Filho Pródigo soube reconhecer o seu endereço para retorno. Esta questão é básica, pois demonstra o retorno para a vida. Fragilizado, derrotado, angustiado, o filho retorna para a vida.

E assim, tecer teias de relações compondo uma rede social, é um retorno para si mesmo. É o caminho de retorno à casa, mesmo que para isto seja preciso novamente lançar-se ao mundo. Ao imaginar a cena do retorno do Filho Pródigo, ilustrada em NOUWEN (1999), o que se vislumbra é uma cena de acolhimento, de retorno para casa, das mãos do pai acolhendo o filho. Procurando sintetizar a imagem, poder-se-ia dizer que é a imagem da afetividade e da acolhida. Acrescentando o quanto é preciso para o homem voltar para a sua casa, para ser o pai que acolhe, que fortalece, que emancipa, e não o irmão mais velho que julga e pune.

Crê-se que a vida em plenitude não é compreendia simplesmente através da ausência de doenças ou da ausência da miséria humana. A existência só pode ter um sentido promissor, também, quando as teias e redes sejam  emancipadoras, pois são elas que conferem  o sentido de vida e confirmam o humano na  concepção de um ser social de relações. Elas permitem ao humano se lançar ao mundo, sair do individualismo e egoísmo, porém, elas permitem também um retorno para si mesmo, e este retorno é a  certeza do  retorno para a vida!
        Como diz NOUWEN (1999, p.27):

“A grande tarefa é da reintegrar-se em si mesmo, de modo que você possa manter as suas necessidades dentro dos seus próprios limites, controlando-as na presença daqueles que ama. A verdadeira reciprocidade no amor exige que as pessoas sejam donas de si mesmas e possam doar-se enquanto permanecem fiéis à sua própria identidade”.

As teias de relações que são estabelecidas com os outros são as mesmas teias que devem ”levar para casa”, ou seja,  para a vida, para o verdadeiro eu. Muitas vezes é fácil estabelecer teias de relações com os outros, mas é difícil estabelecer teias que permitam um retorno a si mesmo. Ao mesmo tempo, se não forem estabelecidas teias de relações com os outros, o ser humano limita-se ao seu mundo privado e se depara com seu próprio limite de ser.

E retornar para a vida é algo que passa do desejo imortal do humano para a sua concretização, quando também os sentidos de vida são reconfigurados na importância de estar-no-mundo e obter, neste estar, um reconhecimento da importância de ser. Na medida em que este reconhecimento efetiva-se, o retorno para casa passa a ser a possibilidade do retorno para a vida. Retornar para casa é o retorno mais sagrado para o espaço mais íntimo na busca incessante do restabelecimento da vocação da felicidade. Oxalá, todos possamos vivenciar este  desejo infindável de sempre  retornar para o nosso eu como templo sagrado de infinitos sentidos.

Fonte:

NOUWEN, Henri J.M. A volta do filho pródigo. A história de um retorno para casa. São Paulo: Paulinas, 1999.





[1] Professor e  Coordenador  de  Graduação do Curso de   Serviço Social da Escola de Humanidades  da  PUCRS. 


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