1 INTRODUÇÃO A crítica da religião de Marx é resultado de itinerário crítico que começa com Hegel, tem um posicionamento fundamental...

DO HOMEM PARA A SOCIEDADE - A crítica da religião apresentada por Marx

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1 INTRODUÇÃO

A crítica da religião de Marx é resultado de itinerário crítico que começa com Hegel, tem um posicionamento fundamental em Feuerbach e culmina na crítica social de Marx.

O Espírito Absoluto, tão presente na filosofia de Hegel, é abandonado por Feuerbach e Marx. Ambos foram hegelianos por um certo período de suas vidas. Feuerbach cria um movimento de esquerda hegeliana e cai num materialismo, reduzindo a religião à antropologia.

Já Marx, concorda com o materialismo de Feuerbach, mas crítica fortemente o colega por este ter se detido diante do problema sem conseguir resolvê-lo. Se o homem é o agente criador da religião, e o homem é um ser histórico – social, então o grande problema e alvo da crítica deve ser o sistema social que permite que surjam fenômenos religiosos alienantes.

O presente trabalho buscará esclarecer mais a postura e o caminho de Marx desde a antropologia de Feuerbach até a sua conclusão de que a sociedade é o mal a ser combatido. Serão analisados no presente trabalho os sete primeiros parágrafos da introdução da Crítica da filosofia do direito de Hegel. Vale ressaltar que a introdução foi colocada como anexo na obra consultada.



2 A RELIGIÃO COMO ALIENAÇÃO

Em sua obra Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx apresenta que o “fundamento da crítica irreligiosa[1]” está no fato do homem criar a religião e não a religião criar o homem. Ou seja, a religião está intrinsecamente ligada à organização social, e não com o ser humano propriamente dito. Por isso, não basta apenas acabar com a religião; é preciso eliminar as situações que as criam.

2.1 O HOMEM CRIA A RELIGIÃO

Marx reforça este pensamento nos seus Manuscritos Econômicos - Filosóficos, ao se tratar da questão judaica. A certa altura do texto, ao analisar os direitos humanos[2], Marx apresenta que “o privilégio da fé é expressamente reconhecido, ou como um direito do homem, ou como consequência de um direito do homem, isto é, a liberdade[3]”. E acrescenta ainda:

A incompatibilidade entre a religião e os direitos do homem encontram-se tão pouco manifesta no conceito dos direitos do homem que o direito de ser religioso, segundo o costume de cada qual, e de praticar o culto da sua religião particular, vem expressamente entre eles incluído. O privilégio da fé é um direito universal do homem.[4]

Fica claro para Marx que a religião é consequência da liberdade humana. Liberdade essa, que busca um consolo sobrenatural para a opressão humana. Sendo, portanto, o homem o criador da religião, e para Marx “o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade[5]”.

Portanto, se o pensamento de Marx estiver certo, a sociedade é quem cria a religião. E se isto for verdade, não bastará apenas combater a religião em si, mas será preciso cortar o mal pela raiz. Assim, o problema da crítica da religião ganha corpo no âmbito da luta social.

2.2 A RELIGIÃO COMO FRUTO SOCIAL

Se em Feuerbach a teologia foi reduzida a pura antropologia; em Marx, ambas (a teologia e a antropologia) são reduzidas a meras produções sociais. Ele afirma que o Estado e a sociedade
produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d’honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião.
A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.[6]

Estas palavras parecem duras, mas expressam uma diferença essencial entre a concepção da alienação religiosa para Feuerbach e Marx. O primeiro, como já foi lembrado, havia reduzido à teologia a antropologia. Marx, contudo, critica a postura de Feuerbach dizendo que “a concepção feuerbachiana do mundo sensível limita-se, por um lado, à mera contemplação deste último [mundo sensível] e, por outro lado, à mera sensação; ele diz ‘o homem’ em vez de os ‘homens históricos reais’[7]”. Marx percebe que o homem é o agente criador e perpetuador da religião. E como já foi visto acima, o homem não é apenas homem, mas sim sociedade. Portanto a religião é, em última análise, um mal do Estado.

Percebe-se que Marx aponta a religião como ferramenta de domação do povo. Ao apontar um horizonte de salvação eterna para o povo, a religião força o povo a se conformar com a situação de exploração social. Assim, a religião serve como ópio para o povo e também como ferramenta da manutenção do poder da burguesia.

Marilena Chauí, ao analisar os parágrafos acima em seu livro Convite à Filosofia, coloca que

Marx pretende mostrar que a religião – referindo-se ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo, isto é, às religiões da salvação – amortece a combatividade dos oprimidos e explorados, porque lhes promete uma vida futura feliz. Na esperança de felicidade e justiça no outro mundo, os despossuídos, explorados e humilhados deixam de combater as causas de suas misérias neste mundo.
Todavia, Marx fez uma outra afirmação que, em geral, não é lembrada. Disse ele que “a religião é lógica e enciclopédia popular, espírito de um mundo sem espírito”. Que significam essas palavras?
Com elas, Marx procurou mostrar que a religião é uma forma de conhecimento e de explicação da realidade, usadas pelas classes populares – lógica e enciclopédia – para dar sentido às coisas, às relações sociais e políticas, encontrando significações – o espírito no mundo sem espírito -, que lhes permitem, periodicamente, lutar contra os poderes tirânicos. Marx tinha na lembrança as revoltas camponesas e populares durante a Reforma Protestante, bem como na Revolução Inglesa de 1644, na Revolução Francesa de 1789, e nos movimentos milenaristas que exprimiram, na Idade Média, e no início dos movimentos socialistas, a luta popular contra a injustiça social e política.[8]

Pode até ser que a autora Marilena Chauí esteja certa quanto à religião ser a base do conhecimento popular, entretanto, parece que para Marx isto não justificava a alienação social que ela provocava.
Para Giovanni Reale e Dario Antiseri,
a religião não é para ele [Marx] a invenção de padres enganadores, mas muito mais obra da humanidade sofredora e oprimida, obrigada a buscar consolação no universo imaginário da fé. Mas as ilusões não se desvanecem se não eliminamos as situações que as criam e exigem[9].

2.3 Da crítica do céu para a crítica da terra

É nesta perspectiva que Marx continua a introdução da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel[10] escrevendo que

a abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para abandonarem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale das lágrimas, do qual a religião é a auréola[11].

Vejam que anteriormente Marx reconheceu a religião como produção social, uma vez que os indivíduos que a criam são indivíduos sociais. Depois ele apresenta a alienação da religião, dizendo que ela é o ópio do povo por induzir o povo a um estado de inércia, ao invés de convocá-lo para uma revolução.
Agora, Marx chega ao auge da sua crítica. Daqui não há mais volta. Para acabar com a felicidade ilusória do povo e levá-lo para a verdadeira felicidade é preciso muito mais do que abandonar a antiga situação na qual estavam situados. É preciso romper com a estrutura social que faz da religião seu instrumento de manipulação social. A referência ao vale das lágrimas remete claramente a situação do proletariado explorado que via na fé um conforto para aguentar as dores mundanas. Assim, a crítica da religião se torna também uma crítica social em Marx, principalmente uma crítica ao sistema capitalista e burguês.
Os dois parágrafos seguintes do livro fazem o fechamento desta trajetória pela crítica da religião apresentada por Hegel, humanizada em Feuerbach e socializada em Marx. Para chegar a sua conclusão, Marx partiu do Espírito Absoluto de Hegel, passando pelo humanismo de Feuerbach, no qual a teologia era simples antropologia, e descobre que, se a religião é produto humano, então ela é produto social. Portanto, mais do que combater a religião, é preciso combater a estrutura que permite o florescimento do sentimento religioso
Assim, Marx apresenta os dois últimos parágrafos da sua crítica[12] apresentando que
a crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que os homens os suportem sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor viva brote. A crítica da religião liberta o homem que perdeu as ilusões, de modo que pense, atue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo, e assim, em volta do seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não circula em torno de si mesmo.
Consequentemente, tarefa da história, depois que o outro mundo da verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade deste mundo. A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a auto-alienação humanas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma-se em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política[13].

Assim, Marx termina sua explanação sobre o verdadeiro alienador do povo. Não é a religião propriamente dita que é o inimigo do povo. Ela apenas serve como instrumento de manipulação do proletariado. A crítica religiosa de Marx apresenta um cunho social, quase de reforma religiosa. O que parece incomodar Marx na religião não é tanto o alento que ela trás ao povo, mas sim o fato deste alento não levar o povo a uma revolução contra seus opressores.



3 CONCLUSÃO

A crítica da religião apresentada por Marx tem um cunho muito mais social e material do que propriamente social. É uma crítica contra a postura eclesial que apoiava (e continua apoiando) a burguesia ao invés de se colocar ao lado do proletariado. Provavelmente se Marx tivesse vivenciado posicionamentos diferentes da Igreja, como a teologia da libertação, ele acabaria por apoia-la.
Parece que Max não se incomodava com o fato da religião dar alento ao povo sofredor, mesmo que este alento fosse ilusório; o problema era que este alento não incitava o povo contra aqueles que os oprimiam e exploravam. A crítica religiosa era, no que cabe à religião, o fato desta ser instrumento da manipulação do povo por parte da burguesia.
Mas, ao contrário de Feuerbach, Marx descobriu que o problema não estava no homem, mas na sociedade. Não bastava eliminar a religião; era preciso exterminar a raiz do problema. E a raiz era justamente o contexto social no qual o clero estava vendido e os burgueses viam na religião uma forma de controlar o povo. A fé era o ópio do povo.
Marx pode ser visto como um revolucionário religioso e social. Sua crítica a religião alimentou a teologia da libertação na América Latina e sua crítica social despertou o proletariado de seu sono que parecia eterno.



REFERÊNCIAS

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2000.
MARX, Karl. A ideologia alemã. 1 ed. revista São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
___________A questão judaica. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Laemmert S. A., 1969 (série Cultura Popular)
___________Crítica da filosofia do direito de Hegel. 1 ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
___________Manifesto do partido comunista. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 2001 (col. Clássicos do Pensamento Político).
___________Manuscritos econômicos - filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1964 (col. Textos Filosóficos).
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1991 (col. Filosofia)




[1] MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 145.
[2] A obra consultada apresenta o termo “direitos do homem”.
[3] MARX, Karl. Manuscritos econômicos Filosóficos, p. 55.
[4] Ibidem, p. 56.
[5] MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p 145.
[6] MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 145.
[7] MARX, Karl. A ideologia alemã, p. 30.
[8]CHAUÍ, Marilena. Convite a filosofia, p. 395.
[9] REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia, vol. III, p.192.
[10] Vale lembrar que a edição consultada apresenta a introdução como um apêndice. O mesmo, segundo nota de rodapé da obra, foi escrito entre dezembro de 1843 e janeiro de 1844 e publicado nos Anais Franco-Alemães em 1844.
[11] Marx, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 146.
[12] Vale lembrar que estes parágrafos não serão os últimos da introdução da Crítica da filosofia do direito de Hegel. Apenas me parece que, nesta obra, a crítica é apresentada de forma sintetizada nos sete primeiros parágrafos da obra citada.
[13] MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 146.


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